O Poder da Palavra
Na tradição bíblica, existe uma noção profundamente enraizada de que as palavras têm poder. Desde o Gênesis, onde o mundo é criado por meio da palavra (“Haja luz”), até os Provérbios, que ensinam que “a morte e a vida estão no poder da língua”, somos lembrados de que a linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas uma força capaz de transformar realidades. Palavras podem edificar, curar, animar, mas também ferir, destruir e causar sofrimento.
Curiosamente, essa ideia é usada pela psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud, também atribui grande poder à palavra. Um exemplo marcante dessa perspectiva está em uma história relatada. Uma paciente havia tentado diversos tratamentos para lidar com suas dores, mas nenhum deles havia surtido efeito. Quando lhe foi sugerido um novo tratamento, baseado na “cura pela palavra”, ela aceitou relutantemente e, já ao chegar, disse a Freud que não acreditava que apenas falar pudesse curar suas dores.
Freud, ao invés de iniciar uma análise convencional, entregou-lhe um espelho e pediu que ela se olhasse. Em seguida, começou a descrevê-la com palavras elogiosas: destacou seus lábios carnudos, seus cabelos sedosos, seus olhos brilhantes, a beleza do seu rosto. A paciente, então, começou a se encher de vaidade e alegria; seu semblante se iluminou. No entanto, Freud mudou o tom de sua fala e passou a apontar as marcas do tempo: as rugas que começavam a surgir, os sinais de envelhecimento, a juventude que aos poucos se esvaía. A expressão da paciente mudou. Aquelas palavras lhe causaram dor, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Nesse momento, Freud disse: Quando começamos o tratamento?
Esse episódio ilustra com clareza o impacto que as palavras têm sobre o corpo e a psique. Mostra como aquilo que é dito, e como é dito, pode alterar estados emocionais e físicos, provocar reações intensas, despertar memórias e tocar em feridas profundas. Assim como a religião, a psicanálise reconhece que a palavra não é neutra: ela carrega afetos, sentidos ocultos, e pode acessar partes do inconsciente que nem mesmo o sujeito conhece plenamente.
Essa reflexão me leva a considerar a ponte possível entre a psicanálise e a espiritualidade. Ambas trabalham com a escuta. No consultório psicanalítico, o paciente fala, e o analista escuta, uma escuta atenta, acolhedora, sem julgamento. Na prática religiosa, especialmente nas orações, o fiel também fala, com fé, com entrega, às vezes com desespero, e acredita que deus o escuta. Essa escuta simbólica, essa sensação de ser ouvido, pode ser profundamente terapêutica.
Muitos pacientes relatam que se sentem melhor durante ou após as sessões, não apenas por interpretarem seus conflitos, mas pela relação que estabelecem com o terapeuta: uma conexão que oferece acolhimento e segurança. O mesmo ocorre com os fiéis que encontram em cristo um confidente, um refúgio. A oração não apaga o sofrimento, mas oferece um espaço simbólico onde ele pode ser expressado e, de certa forma, resignificado. A fé oferece sentido, esperança e, muitas vezes, consolo.
O livro de Eclesiastes traz uma reflexão interessante sobre a mente humana: “Muito pensar traz tristeza.” Em um mundo onde somos constantemente levados ao excesso de pensamentos, preocupações e autocobrança, tanto a religião quanto a psicanálise oferecem caminhos de ressignificação. A religião, por meio da fé e da esperança em algo maior, aponta para um sentido além da dor. A psicanálise, por meio da palavra e da escuta, permite elaborar o sofrimento, compreender suas origens, e encontrar novos significados.
Em ambos os casos, o ser humano encontra alívio, não por meio de soluções mágicas, mas por meio da relação. Relação com o outro, com deus, com o terapeuta, consigo mesmo. A palavra, quando bem usada, se torna instrumento de cura. E é nesse ponto que religião e psicanálise, embora com métodos diferentes, se aproximam: ambas reconhecem que a alma humana precisa ser ouvida, acolhida e compreendida.
Cleiton dos Santos
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