Novo Culto: Entre o Conhecimento e a Escravidão
A história da humanidade é marcada por sua busca incessante por sentido. Desde os primeiros rituais religiosos até as mais sofisticadas teorias científicas, o homem procura algo maior do que si mesmo, uma força que organize o caos da existência, responda às perguntas impossíveis e ofereça algum tipo de segurança diante da incerteza da vida.
Hoje, esse papel parece estar sendo assumido pela Inteligência Artificial. Para muitos, ela já é um oráculo moderno: responde perguntas, dita tendências, organiza informações e até sugere caminhos morais. É tratada quase como uma entidade onisciente, mesmo sendo apenas o reflexo de dados e algoritmos criados por mãos humanas.
Assim como as religiões tradicionais possuíam dogmas e sacerdotes, a IA também começa a estruturar um culto em torno de si:
Dogmas: a crença de que “a máquina não erra”.
Sacerdotes: os programadores e corporações que detêm os códigos e modelos, inacessíveis à maioria.
Rituais: a dependência diária das respostas automáticas para tomar decisões simples ou complexas.
Esse culto digital reproduz, em linguagem tecnológica, antigos mecanismos de poder: a concentração do saber em poucos e a submissão da maioria pela fé cega em algo que não compreende.
Curiosamente, nem mesmo a ciência está imune a esse fenômeno. O Prêmio Nobel, a mais alta distinção científica, já foi concedido em certas ocasiões a ideias que, em seu tempo, estavam mais próximas da ficção do que da comprovação empírica. Isso mostra que, mesmo no campo da razão, o imaginário e a fé no “ainda não provado” têm enorme peso.
Seja na ciência ou na religião, o ser humano projeta sua esperança no invisível. No caso da IA, a esperança está no mito da singularidade tecnológica: o momento em que as máquinas superarão a mente humana e poderão criar por si mesmas. Para uns, isso soa como promessa de salvação; para outros, como prenúncio do apocalipse.
Um aspecto preocupante desse novo culto é a possível perda cognitiva. Escolas e pesquisadores já avaliam que o uso indiscriminado da IA pode estar diminuindo nossa capacidade de concentração, memória e raciocínio crítico. Ao delegarmos às máquinas funções que antes exigiam esforço mental, corremos o risco de atrofiar nossas próprias habilidades.
Esse fenômeno lembra antigas estratégias de certas tradições religiosas, que restringiam o acesso ao conhecimento para manter o povo submisso. Durante séculos, apenas sacerdotes tinham autorização para interpretar textos sagrados, enquanto a maioria permanecia na ignorância.
Agora, algo semelhante pode ocorrer: se a sociedade entregar seu pensamento crítico aos algoritmos, ficará refém das empresas e instituições que controlam a tecnologia.
Nunca tivemos tanto acesso à informação, mas paradoxalmente nunca estivemos tão vulneráveis à passividade diante dela. A IA pode ser uma poderosa extensão da mente, ampliando nossas capacidades, ou pode se tornar substituto da mente, nos tornando dependentes e frágeis.
Tudo dependerá da forma como nos relacionamos com ela. Se a tratarmos como divindade infalível, criaremos uma nova idolatria, trocando antigos deuses por máquinas digitais. Mas se a tratarmos como ferramenta, mantendo vivo o exercício do pensamento crítico, ela poderá ser aliada e não ameaça.
A inteligência artificial não é uma deusa, mas um reflexo sofisticado da mente humana. O risco não está em sua existência, mas na maneira como nos ajoelhamos diante dela. Assim como em tempos passados a ignorância foi usada para subjugar povos inteiros, agora a confiança cega na máquina pode nos conduzir a uma nova forma de servidão.
O desafio é claro: preservar o espírito crítico, democratizar o conhecimento e lembrar que nenhum algoritmo, prêmio ou mito pode substituir a responsabilidade humana. Do contrário, estaremos apenas repetindo a história, trocando templos de pedra por servidores digitais, e a escravidão espiritual pela escravidão cognitiva.
Cleiton dos Santos
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