O Espelho das Fábulas
Desde tempos antigos, o ser humano aprendeu a suportar o peso da existência por meio das histórias que contava. Muito antes da escrita, quando o frio e a escuridão cercavam os povos do norte e os obrigavam a se recolher durante meses de inverno, surgiram os contadores de histórias, aqueles que, em volta do fogo, faziam do mito uma forma de manter a alma acesa.
Essas narrativas, entre o sagrado e o imaginário, não eram apenas passatempo. Eram modos de guardar a sabedoria e de comunicar o invisível. Cada fábula nascia da tentativa de traduzir a experiência humana, o medo do abandono, a dor da perda, o desejo de redenção em linguagem simbólica. O mito é, assim, a primeira filosofia do homem: sua forma mais antiga de pensar, antes mesmo de saber que pensava.
A história da traição de Jesus, transmitida pelos evangelhos, participa desse mesmo impulso ancestral. Ela é uma das expressões mais intensas do drama humano, o momento em que o amor e a lealdade se corrompem, em que o discípulo transforma o mestre em mercadoria. Mas, mais do que um acontecimento histórico, essa cena fala de algo que se repete em nós: a tensão constante entre o ideal e o desejo, entre a verdade e a tentação.
Por isso, as narrativas de traição aparecem em todas as culturas. Bruto apunhala César, o amigo que o amava. Gollum engana Frodo, dominado pelo poder do anel. Cypher, em Matrix, entrega os companheiros para voltar à ilusão confortável. Em cada uma dessas histórias, o mesmo gesto se repete: o humano que trai o que há de mais verdadeiro em si mesmo, em troca de algo que acredita mais fácil, mais seguro, mais prazeroso.
Há algo de profundamente humano nas histórias em que o inocente é traído, o mestre é morto e o segredo se perde. Elas aparecem sob mil formas, no Evangelho, na Maçonaria, nas antigas fábulas narradas ao redor do fogo.
Hiram Abiff, o arquiteto do Templo de Salomão, recusa revelar o segredo da arte e morre pelas mãos dos que não suportam o limite do tempo. Jesus, o mestre da Palavra, é entregue por aquele que não suportou o peso da verdade. Em ambos os mitos, o gesto da traição nasce do mesmo solo: a impaciência humana diante do mistério.
O homem sempre quis possuir o segredo antes de estar pronto para recebê-lo. E é nesse desejo prematuro, desejo de saber sem se transformar, de tocar o sagrado sem o caminho, que ele se trai. Os três companheiros de Hiram são as três vozes interiores que todos conhecem: a vaidade que quer reconhecimento, a inveja que quer o que é do outro, e a impaciência que quer o fruto sem a semente. Assim como Judas, essas forças habitam em cada um de nós.
Mas o centro do mito não é a morte, é o reencontro. Quando o corpo de Hiram é encontrado, quando Cristo ressuscita, o símbolo nos diz que o que é verdadeiro não pode ser destruído. A Palavra perdida permanece viva no silêncio da alma, esperando ser reencontrada.
O que morre, na verdade, é apenas a forma, o ego que acreditava poder conter o sagrado.
A sabedoria antiga compreendia isso: por isso contava essas histórias, repetindo-as geração após geração.
Quando os povos antigos, isolados pelo inverno, inventavam fábulas à luz do fogo, não estavam apenas se distraindo, estavam partilhando o mapa invisível da alma humana.
Em cada mito, transmitiam o aprendizado de que o ser humano só se torna inteiro quando atravessa a própria sombra, quando reconhece o traidor que o habita e ainda assim escolhe reconstruir o templo interior.
A Palavra perdida, o Verbo encarnado, o mestre silencioso, são todos nomes de um mesmo mistério: o da consciência que precisa morrer para renascer, do homem que se trai para poder se encontrar.
Pois toda iniciação, seja religiosa ou simbólica, começa assim: com a queda, com a perda, com o reconhecimento da própria ruína.
E termina, se há humildade suficiente, com o reencontro daquilo que nunca esteve realmente perdido:
a centelha que sobrevive em meio às cinzas, o silêncio onde o divino ainda fala.
O que essas fábulas nos ensinam é que a traição não é apenas o ato de enganar o outro, mas também, e talvez sobretudo, o de trair a própria essência. Judas, nesse sentido, é uma figura simbólica: aquele que não suporta o peso da verdade e, por isso, a entrega. Cada vez que escolhemos a aparência em lugar da autenticidade, o conforto em vez da lucidez, o aplauso no lugar da consciência, repetimos o gesto de Judas.
As fábulas, os mitos, as parábolas, todos esses relatos milenares, funcionam como espelhos da alma coletiva. Neles, projetamos o que há de mais luminoso e o que há de mais obscuro em nós. São modos de dizer, de geração em geração, o que ainda não sabemos nomear: o amor, o medo, o remorso, a esperança. O herói e o traidor, o santo e o demônio, são apenas faces de uma mesma condição, a do ser dividido que habita cada um de nós.
É por isso que, ainda hoje, quando contamos uma história, estamos repetindo aquele gesto antigo dos povos que enfrentavam o inverno ao redor do fogo. Continuamos tentando compreender o sentido da existência por meio da imaginação. Continuamos transformando a experiência em símbolo.
As histórias, no fundo, são a forma mais humana de oração: nelas pedimos sentido, confessamos nossas quedas e, às vezes, encontramos redenção. Assim, o mito da traição, de Jesus, de Bruto, de Gollum ou de qualquer outro, não é uma lembrança distante, mas uma advertência silenciosa:
que todo homem, em algum momento, é posto diante de si mesmo, e é nesse instante que se decide se será fiel ou se repetirá, mais uma vez, o gesto de Judas.
Cleiton dos Santos
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